Familiares do pequeno Miguel Lucca Baptista Barcellos Zaqueu, de 1 ano e 8 meses, denunciam negligência em hospitais da rede pública do Rio após a criança passar por três unidades de saúde apresentando sintomas de febre, dor, vômito e cansaço respiratório. O menino morreu na última sexta-feira (13) no Hospital Municipal Albert Schweitzer, em Realengo, em decorrência de uma pneumonia e derrame pulmonar. O caso é investigado pela Polícia Civil.
A mãe da criança, a design de sobrancelhas Rhayza Barcellos, explicou que ao apresentar os primeiros sintomas, Miguel foi levado à UPA da Tijuca, na Zona Norte, onde não recebeu os atendimentos adequados.
“Eles não realizaram nenhum tipo de exame, sabendo que meu filho já estava desidratado, porque ele não estava conseguindo comer, porque o que ele comia, vomitava. Não colocaram ele no soro, não fizeram nada, porque alegaram que a veia dele estava muito difícil de achar. Realmente, era muito difícil de achar, mas eles nem tentaram, eles se esforçaram, sabe? E aí, trataram como se fosse o estômago, a respiração já estava ruim, mas não fizeram nem um exame de sangue, de urina, nada”, disse.
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O menino foi com o pai Lidson Baptista até o hospital, enquanto a mãe cuidava da outra filha do casal. Os dois chegaram à unidade por volta das 4h e retornaram para a casa às 6h, com o filho ainda sem apresentar melhoras.
“Os profissionais de saúde demonstraram conduta negligente, minimizando os sintomas e sugerindo que se tratava apenas de um quadro simples.Desde o primeiro momento, percebi que o atendimento foi extremamente negligente, despreparado e sem a devida atenção que a gravidade do caso exigia. Após a triagem, houve omissão na solicitação de exames e o atendimento médico foi superficial, mesmo com meu filho apresentando visível estado de debilidade”, contou o pai.
Corrida contra o tempo
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Com o filho apresentando os mesmos sintomas, a mãe conta que no mesmo dia, na parte da noite, o levaram para a UPA da Rocinha, na Zona Sul.
“A gente ficou o dia inteiro com ele assim, ele estava sem fome, sem apetite. Comeu fruta, que foi o que a gente conseguiu dar, um pouco da água, porque a médica falou que ele precisava se hidratar, e quando foi a noite, naquele mesmo dia, eu e ele fomos para uma outra rede. E lá, eles me deram a devida atenção”, relatou.
O pai explicou que de imediato o filho foi internado na unidade, onde foram solicitados exames de sangue e raio-X. Em seguida, os profissionais solicitaram uma vaga zero para o Hospital Municipal Albert Schweitzer.
A vaga zero garante que pacientes em situação de emergência grave tenham acesso imediato a atendimento hospitalar. “Miguel foi transferido de vaga zero para esse hospital, ou seja, eles teriam que estar esperando ele já com um leito pronto e todo o suporte necessário porque eles já sabiam que o Miguel ia pra lá e a gravidade do caso”, explicou o pai.
Apesar da urgência, Rhaysa conta que o filho esperou por mais de três horas por um leito. “Ele chegou no hospital e não foi prioridade, ficou no corredor sem assistência mínima. Eles chegaram no hospital às 11h e pouco e só foram para sala quase 15h, imagina o quanto o quadro se agravou?”, disse.
Durante o tempo de espera, o menino piorou visivelmente, segundo a família. “Mesmo assim, a equipe médica negligenciou os sinais clínicos críticos, não adotando as medidas cabíveis com a urgência necessária. Quando finalmente alguns exames foram realizados ou buscou-se atendimento especializado, meu filho já apresentava sinais claros de cansaço extremo e febre. Houve atraso na administração das medicações adequadas e ausência de comunicação transparente comigo”, contou Lidson.
Em meio a angústia, os pais ainda enfrentaram problemas para realização da tomografia. “Esperaram mais de 40 minutos pra fazer porque não tinha o cilindro de oxigênio, a enfermeira e a doutora foram junto pra fazer mesmo sem o oxigênio. A médica e a enfermeira da ambulância que fizeram mais pelo Miguel que toda a equipe do hospital”, afirmou a mãe.
“Após a tomografia, o cirurgião analisou o exame e concluiu que havia apenas uma pequena alteração no pulmão, descartando a necessidade de drenagem, e indicou o retorno ao hospital de origem. Diante disso, questionei a decisão e, após insistência, foi dito que outra doutora iria avaliá-lo. Após a nova avaliação, foi decidido que ele seria internado ali mesmo, pois não tinha condições de ser transferido novamente”, frisou o pai.
Após a internação, os pais relataram que o menino chegou a apresentar melhora considerável, respondendo com gestos e tentando retirar os acessos e a máscara de oxigênio. “Em seguida, ele demonstrou cansaço novamente. Como se mexeu bastante, o oxímetro se soltou. Solicitei por mais de três vezes que o aparelho fosse religado, especialmente porque, com o cansaço, foi colocada uma máscara de VNI (ventilação não invasiva) no meu filho, mas o oxímetro permanecia desligado e sem registros na tela”, disseram.
Em um intervalo de 5 minutos, o casal notou que o filho estava ainda mais cansado e com os lábios um pouco arroxeados.
“Pela terceira vez, chamei uma enfermeira para recolocar o oxímetro, sem sucesso. Tentei eu mesmo posicioná-lo. Em seguida, senti que meu filho estava imóvel e imaginei que estivesse dormindo. Uma enfermeira passou, olhou para ele e demonstrou surpresa. Quando se aproximou, ele já estava com sangramento nasal e saliva pela boca. Entrei em desespero e comecei a gritar por ajuda. Fui retirado da sala, enquanto os médicos tentavam reanimá-lo”, lamentou o pai.
“Depois que o quadro se agravou, eles tentaram correr atrás e tentaram fazer que ele voltasse, mas não tinha mais o que fazer”, acrescentou a mãe.
Rhaysa ainda acredita que o marido e o filho tenham passado por episódios de racismo na unidade, uma vez que só receberam o devido atendimento nas unidades após sua chegada. “Eles não foram atendidos bem por causa da cor da pele e quando eu estava, eu senti essa diferença, porque em todas às vezes que houve troca de plantão, os médicos só falavam virados para mim, como se o pai fosse um nada, como se não estivesse ali. É difícil não pensar em racismo”, contou.
Despedida
O velório do Miguel Lucca aconteceu nesta segunda-feira (16) na Capela E, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju. O enterro teve início às 11h.
Emocionada, a mãe revelou que tenta se manter forte para buscar por Justiça. “Eu não sei dizer nem como estou me sentindo, só que a gente não pode nem demonstrar muito o que a gente está vivendo, porque a gente está passando por tanta coisa, a gente tem que ter tanta força. Meu filho era pardo, ele tinha lábios carnudos, nariz era um pouco grande, ele era gordinho, super sorridente, onde passava ele contagiava, não tinha mau-humor pra ele, não tinha um dia que ele acordava de cara emburrada, mesmo doente, ele era a alegria da minha casa”, lamentou.
O que dizem os hospitais?
A direção da UPA Tijuca informou que o paciente deu entrada na unidade com dor abdominal, tosse com secreção, náuseas e vômitos. “Sintomas que, de acordo com a família, tinham começado no dia anterior. A equipe médica avaliou o menino com base nos parâmetros estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para pacientes de 0 a 5 anos. A partir desses critérios, constatou que a criança não apresentava sinais de gravidade. Os sintomas foram tratados e os responsáveis orientados para que, em caso de piora no quadro, ele fosse levado a uma unidade de emergência.”
Já a direção do Hospital Municipal Albert Schweitzer (HMAS) esclareceu que Miguel deu entrada às 11h25, encaminhado de outra unidade para avaliação da cirurgia pediátrica. Passou pela primeira avaliação médica e, às 12h13, realizou a tomografia computadorizada.
“O diagnóstico foi de pneumonia e derrame pulmonar. A equipe médica constatou não haver indicação cirúrgica mas, devido à gravidade do quadro, o paciente foi absorvido, recebendo todos os cuidados indicados. Infelizmente, evoluiu com rápida piora clínica e parada cardiorrespiratória devido à infecção (pneumonia). Apesar de todos os esforços dos profissionais, não resistiu. O corpo foi encaminhado ao IML por solicitação da família, para detalhar a causa do óbito”, disse em comunicado.
O hospital reforçou que “não procede que houve descaso e episódios de racismo. O paciente deu entrada na unidade de ambulância e já com equipe assistencial dando o suporte necessário ao caso.”
Ainda em nota, a direção do HMAS disse que lamenta o falecimento e segue à disposição dos familiares para outros esclarecimentos.
O caso foi registrado na 33ª DP (Realengo). Segundo a Polícia Civil, testemunhas serão ouvidas e outras diligências estão em andamento para apurar os fatos.