Reportagem especial de André Aquino.
Encontrar um calendário da década de 20; o passaporte com o maior número de vistos; apresentar um disco da década de 30; colocar 20 pessoas num Fiat 147. Ou deixar uma pipa no ar por mais tempo e trocar quatro pneus de um carro. Tudo cronometrado e com o prazo a ser cumprido. Detalhe: numa época em que não havia internet, Google e nem WhatsApp. Era na garra e na coragem.
Quem já passou dos 40 anos lembra bem desses desafios. Eram as provas da Gicanac da Feira da Primavera, organizadas pelo NAC (Núcleo de Ação Comunitária). Assim como as tarefas eram inusitadas, os nomes das equipes também: Crás, Buf-Buf, Flap, Tropa de Burro de Listras, Solf, Verde Novo, Bola Cheia, Escudeira 69, Três Tribos e Anarquia. Cada região da cidade tinha a sua equipe, com suas cores e seu número, e seus significados.
A primeira edição da gincana aconteceu no ano 1978 e durou até 2000. Neste ano de 2018, ela voltará, como também a própria Feira da Primavera.
A cidade parava
Quem não era integrante de uma equipe, ajudava de alguma maneira. “Movimentava toda a cidade. As equipes sempre me procuravam para ajudar nas provas. Já perdi a conta de quantas vezes saía de madrugada para correr atrás das provas”, contou a líder comunitária Fátima Martins.
Mas, de madrugada? “Sim. Algumas tarefas eram entregues no final da tarde e deveriam ser apresentadas na manhã do dia seguinte”, contou ela, que hoje é presidente da FAM (Federação das Associações de Moradores).
Organização, união e planejamento
Um mês antes já começava a parte esportiva da gincana. Normalmente, era no Recreio do Trabalhador com jogos de futsal, basquete, vôlei e já contavam pontos para quando começasse a feira.
“A rapaziada já começava a se reunir todos os finais de semana para conseguir patrocínio a fim de confeccionar as camisas, abastecer os carros e adesivá-los”, disse Almazyr Mattos Junior, que fazia parte da Tropa Burro de Listras. A equipe era da região da Ponte Alta, Siderville e Jardim Suíça,
O desfile era fantástico. Todas as equipes entravam na Ilha São João com um número enorme de participantes com suas bandeiras e cantando seu grito de guerra.
Crás e Buf-Buf
Concorrentes sim, inimigo jamais. No final da década de 70, quando a festa ainda era na Praça Brasil, na Vila Santa Cecília, o Fla x Flu das gincanas era entre as equipes Cras e Buf-Buf. As duas eram formadas pelos jovens da Bela Vista, Vila e Laranjal. Uma o número era 7, a outra 77.
“Era uma rivalidade enorme, mas não se via confusões e brigas. Éramos todos amigos, frequentamos os mesmos lugares Os meninos de uma equipe namoravam as meninas da outra”, relatou Zaira Monachesi, fundadora e líder da equipe Crás. Na época, ela era estudante de 20 anos e hoje arquiteta com 60.
“Depois das provas, e da madrugada virada, todos iam beber juntos. Havia rivalidade, mas jamais nós nos víamos como inimigos”, destacou o engenheiro Bruno Fernandes, de 57 anos, componente da Buf-Buf
Lição de vida
Uma prova da gincana mexeu com Zaira, dando uma grande lição de vida. O desafio era: conseguir uma pessoa com mais de 18 anos e tivesse 35 quilos. Outra acima de 120 quilos. As duas pessoas deviam ser pesadas no palco da Ilha São João, só de roupa de banho.
A Crás conseguiu completar a tarefa. “Arrumamos uma família que havia um filho com demência e, devido a doença, era bem magro. Quando olhei a cena, tive a certeza que seres humanos estavam sendo expostos na feira, numa maneira não agradável. Antes da pesagem, cheguei próximo à mãe do rapaz e disse: ‘Não há necessidade dele ir ao palco. Não somos obrigados a completar a prova’. A mãe, de uma maneira sábia, me respondeu: ‘Em toda vida do meu filho, ele nunca ajudou ninguém. Essa é a oportunidade dele contribuir de alguma forma’”, contou Zaira, que se emociona até hoje com a história.
Depois daquela história, foi decidido entre as equipes e a organização da gincana que as provas não envolveriam pessoas para o cumprimento delas.
Politicamente incorreta
Numa época em que o politicamente correto não prevalecia, algumas tarefas de ontem seriam recriminadas hoje, até porque infringiria as leis atuais. Apresentar uma tartaruga com o casco pintado com cores da bandeira do Brasil e um urubu recolhido do lixão.
A Escudeira 69, por exemplo, era formadas por motoristas que participavam de pegas no AeroClube. Na mesma região da cidade, surgiu também a Verde Novo.
Outro desafio era: apresentar três casais com cabelos raspados. Que mulher iria topar cortar o cabelo? “Os meninos da Crás foram até um prostíbulo e contrataram três meninas. E, claro, conseguimos concluir a prova”, relembra Zaira, aos risos, que comandou a equipe tri-campeã (1978, 79 e 80).
Bola-Cheia
O grito de guerra espalhava: “A Bola-Cheia é quem manda.. Volta Redonda, Volta Redonda”. A equipe, que surgiu na Vila Brasília, foi a última que marcou uma geração das gincanas. Fundada em 1ª de abril de 1997, pelo seu líder Toninho Oreste, desfilava os carros adesivados em toda cidade. Era a antiga “Pá & Bola”.
A equipe chegou a ter três mil membros e foi tetra campeã (1997 a 2000). A criatividade era o ponto forte: eles criaram a viação “Pé No Chão”, um ônibus que o motor era os pés dos componentes.
Rezava a lenda, mas a história é verdadeira e antológica. A equipe de Toninho Oreste utilizou um helicóptero para completar uma prova. O desafio era: arrumar um disco de comemoração do cinquentenário do Samba. Havia apenas 50 unidades em todo país. A gravadora distribuiu aos principais radialistas do país. Então, a equipe foi até a Rádio Globo para anunciar que estava procurando a edição especial do LP.
“Foi aparecendo disco em todos país: Amazonas, Minas Gerais… O mais próximo era na cidade de Bom Jardim, na região Serrana, próxima a Nova Friburgo. Alugamos um carro e fomos até a Baixada Fluminense. De lá, um helicóptero levou os integrantes da equipe até a cidade. E trouxe de volta para Volta Redonda, descendo na própria Ilha São João”, contou Toninho.
Mas, como a equipe conseguiu dinheiro? “Um integrante passou o cartão de crédito e fizemos uma vaquinha para pagá-lo. Cada um equipe dava podia”, relatou.
“A Gincana era uma grande festa que mobilizava muita gente, em especial os jovens. Virou uma verdadeira tradição que por anos movimentou a cidade. Me lembro que a gincana ficou tão popular, que muita gente fazia questão de comprar camisas das equipes para ter de recordação”, disse o jornalista Renato Natividade, um adolescente da década de 90.
Ele, além da Pá & Bola, participou também das equipes Três Tribos, uma turma do Aterrado; e da Anarquia, que era do final do Retiro e reunia um do grupo de jovens da igreja São Francisco de Assis.
Gincana, o cunho social
Não era só de diversão que a gincana era pautada. Mas também pelo cunho social que se propunha. Milhares de alimentos e roupas foram arrecadados nos anos da gincana. Os materiais eram doados para instituições de caridade do município.
Com o tempo e com a popularização, muitas pessoas acabaram confundindo o papel da Gincana e isso fez com que ela acabasse no ano de 2000.
O retorno da tradição
Mas, agora, existe a proposta de resgatar uma fase legal, e lembrar os bons tempos da Gincana.
A prefeitura vai voltar a realizar em setembro a Feira da Primavera, que neste ano completa a sua 41ª edição. A programação e outros detalhes do evento ainda estão sendo alinhados, mas os organizadores já definiram que as tradicionais gincanas retornarão.
Para isso, a prefeitura está convidando todas as equipes que um dia já participaram ou novas equipes interessadas, para comparecerem a reunião de planejamento das gincanas. A reunião acontecerá na próxima segunda-feira, dia 18, às 8h30min, no auditório da prefeitura. •