Sociedade - Especial

ESPECIAL: Álcool, quando deixa de ser diversão e passa a ser doença



A pequena, estreita e pouca iluminada escada dá acesso a uma sala cheia de cadeira de plásticos. Dentro, pessoas em recuperação vivem e contam a sua vitória das últimas 24 horas. O prédio surrado na Avenida Amaral Peixoto, no Centro de Volta Redonda, abriga uma reunião da irmandade Alcoólicos Anônimos e, para muitos, ali a vida é salva diariamente na luta contra o consumo excessivo de bebidas. Um dos sagrados do AA: o que é dito na sala não sai de lá.

Durante duas semanas, a equipe do TribunaSF mergulhou em histórias de superação do alcoolismo, perdas causadas pela bebida e reuniões do AA (Alcoólicos Anônimos), grupo de mútua-ajuda de 12 passos. A reportagem especial, produzida pelo repórter André Aquino, serve de alerta aos jovens sobre o consumo excessivo do álcool e para aqueles que sofrem – tanto os familiares quanto dependentes – há uma solução para a doença. A ideia não é colocar água no chopp de ninguém, mas também não é tampar o sol com a peneira. O alcoolismo é uma doença incurável, progressiva e fatal.

Ela é democrática: não escolhe a classe social, sexo, cor de pele, idade e preferências sexuais. “Um alcoólico no uso pode viver de baixo de um viaduto como também numa mansão. Mas, o dor interna é intensa e a mesma”, define uma das alcólicas, em recuperação há 23 anos, de Volta Redonda.

Numa forma de mantra, ao mesmo tempo eficaz, os encontros começam com uma oração pedindo serenidade, coragem e sabedoria para enfrentar a doença, terminando com a frase “um dia de cada vez”.

“O programa não tem ligação nenhuma com religião, mas é espiritual”, continuou explicando.

Na reunião, cada membro da irmandade se apresenta com o nome e afirmando que é “sou um alcoólatra em recuperação”.

O único requisito para fazer parte do AA é o desejo real de parar de beber. Do ponto do desejo até admissão e aceitação da doença pode levar anos: “Chegou num determinado tempo que eu dizia ‘eu não bebo nunca mais’, porém quando curava a ressaca voltava a beber e fazer as mesmas insanidades. Com o programa de 12 passos descobri que o nunca mais é tempo demais. E comecei a viver um dia de cada vez. Só por hoje, não bebi”, relata outro membro, de Resende.

“Quando bebo, perco toda referência de normalidade e viro um animal irracional”

(empresário, 54 anos, de Volta Redonda)

“O álcool me transformou em uma pessoa que não sou”

(engenheiro, de 61 anos, de Angra dos Reis)

25% da população tem pré-disposição ao alcoolismo

Uma a cada quatro pessoas tem a pré-disposição para a dependência alcoólico, segundo informou o médico psiquiatra Augusto César Ribeiro, com mais de três décadas de experiência. “Infelizmente as pessoas acham que alcoolismo é só quem está caído na sarjeta. A dependência tem diversos níveis, mas em todas elas há uma da saúde física, mental e, até mesmo, espiritual”, afirmou o médico.

Segundo o especialista, o corpo humano não foi feito para o consumo do álcool e acredita que daqui a alguns séculos, a bebida não será mais um problema. “O efeito dela é cumulativo. Na sociedade do futuro, daqui a uns seis séculos, isso vai virar um flash da nossa história. Depois de muito custo, de muito se perder, a sociedade aprende”, disse.

“Hoje é o dia mais importante da minha vida e, portanto, eu não bebo”

Em Angra dos Reis, aos 65 anos, Cláudio Sebastião Fernandes está sem ingerir bebida alcoólica há mais de 23 anos. “Lembro como se fosse ontem meu último gole na bebida: 5 de novembro de 1994. Foi terrível, mas lembrar me ajuda ficar sóbrio”, contou. O ‘seu’ Cláudio comemora cada dia que passa sem beber. “O ontem já passou e o amanhã está por vir. Hoje é o dia mais importante da minha vida e portanto eu não bebo”, falou.

Ele contou que começou a beber porque já tinha o problema do alcoolismo na família. “Meu primeiro contato foi aos 12 anos por curiosidade, ao ver as pessoas bebendo eu achei que era prazeroso e por curiosidade tomei a primeira dose de bebida alcóolica. Em seguida, perdi o controle pelo meu comportamento de beber”.

A primeira perda do homem foi quando abandonou a escola, ainda no ensino médio. “Após sete anos de bebedeiras, com diversas perdas, mudando de vários lugares. Morei em seis estados. Eu percebi que havia a necessidade de abandonar a bebida”, contou ele, que hoje é empresário.

Foi em uma reunião de Alcoólicos Anônimos que ele percebeu que podia ter ajuda para superar o vício. “Nós falamos quem somos, quem éramos quando bebíamos, quem somos hoje e como podemos ajudar o outro alcóolico. Geralmente as pessoas que tentavam me ajudar, me aconselhavam e eu tinha o hábito de não aceitar esses conselhos. Outros criticavam e ao chegar em AA eu estava confuso, não sabia o que encontrar”, lembrou.

“O AA nos mostra uma maneira de vida em que o alcoólico passa a ser feliz sem o álcool”, disse.

“Na minha primeira reunião eu fiquei surpreso, porque ninguém me apontou o dedo como alcoólico, ninguém me disse que eu tinha que parar de beber. Apenas contaram quem eram e como estavam depois. E eu percebi que havia a possibilidade de mudar”, falou.

Com a progressão da recuperação, ele conseguiu encontrar uma nova forma de viver. “Com o decorrer do tempo, nós vamos percebendo que há necessidade de retomar o convívio social. O Alcoólicos Anônimos, além de nos ensinar a abandonar a bebida, nos mostra uma maneira de vida em que o alcoólico passa a ser feliz sem o álcool e terá o seu convívio social naturalmente”, concluiu

“Eu matei uma pessoa por dirigir bêbado e fui preso. Conto essa história todos para mim mesmo para não voltar a ingerir álcool. Esse é um dos meus remédios diários”
(metalúrgico, de 39 anos, de Barra Mansa)


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